Parte I
O inverno chegou às pressas. O frio
faz-nos tiritar e os dentes rangem às ordens da cacimba. Quando o sol se
esconde pelas montanhas, nada é melhor do que aconchegar-me às loucas loucuras
do meu avô. Ele, de tanto ser velho, diz possuir o conhecimento sobre a vida.
Talvez seja por isso que a vida lhe premeia com a própria vida. É um velhote
bastante divertido, mas ingênuo. Não é aquele tipo de velho a quem se pode
considerar biblioteca viva, não. Mas sim um jazigo virgem do qual se podem
explorar as mais preciosíssimas pedrinhas de conhecimento. À guisa de exemplo,
semana passada ele zombou de mim. Veja a conversa toda:
-
Vô, o senhor viveu a colonização. Explique-me como se deixaram dominar por
gente estranha, branca, fragilizada por não estar em sua terra. Eram tão
tapados a ponto de serem dominados por um grupinho que cabia em pequenos
barcos?! Nós não aceitaríamos isso.
-
Não te vou responder. Antes dá-me rapé. A minha idade já está mais velha que
sem rapé o meu cérebro não divaga. Sou um calhambeque que precisa de um
empurrão para funcionar.
-
Está bem vovô! Volto já.
-
Alto lá! Vai correndo, mas antes pensa nisto. Nós aceitamos a colonização
porque fomos enganados. Fomos mais hospitaleiros do que hospedeiros. Recebemo-los
não só de peito, mas também de braços e mãos abertos. Demos-lhes abrigo, água e
comida. Nunca tínhamos sido colonizados. Foi a primeira vez que isso nos
aconteceu. Não éramos escolarizados, mas também não éramos analfabetos. Nada
sabíamos das más intenções deles. Tudo foi estranho. Tentaram a todo o custo
transformar-nos em portugueses negros. Forçaram-nos a beber da cultura deles, a
falar a língua deles. Mas resistimos com muita veemência. Não permitimos que a
nossa língua morresse. É por isso que vós a tende como herança. Não incineramos
a nossa tradição. As nossas crenças sobreviveram. Cá tiraram apenas alguns
bocados de ouro e marfim, mas na nossa falta de escolaridade preservamos a
maior riqueza para que vós desfrutásseis dela.
-
Mas avô…!
-
Ainda não terminei. Hoje vós sabeis de tudo, meu Muzaia! Vós sabeis do preço da
colonização. Sabeis sobejamente que o branco visita a África com a intenção de
delapidar tudo o que vos deixamos. Vós tendes Universidades onde aprendeis tudo
sobre a África e sobre o Ocidente. Mas sois mais analfabetos escolarizados ou
analfabetos funcionais do que os inescolarizados que éramos. Vós não sabeis
desfrutar da herança. Hoje mantendes negócios estranhos com o Ocidente. Vendeis
todos os jazigos em troca da dignidade do povo. Estais conscientes do perigo
que vos traz a cooperação com o branco mas não tendes escrúpulos.
-
Vô, deixa de vós, vós, porque os verbos são difíceis de entende… malta tendes,
sois, mantendes, sabeis, isso é complicado. Usa vocês ou você.
-
Valha-me Deus, tu estás no Liceu, digo, na Universidade e não dominas a gramática?!
Bolas pa! Bolas pa. O que andas aprendendo oh cachopo. Não conheces a língua!? Vocês
estão a passar pela pior colonização. Hoje não mais há chicote e chibatadas. Não
mais há trabalho forçado. Mas o trabalho é mal remunerado. Nós fomos única e
simplesmente colonizados por um opressor, o português. Vocês, então, estão às
ordens do branco que vos aplica uma colonização ideológica. Mas um segundo
colonizador é o preto conterrâneo vosso. Olha lá, existe um jovem cantor que me
traz uma máxima de se dar vênia. Ele diz “expulsamos o colono mas nunca o
colonialismo” (Azagaia). Mas nós expurgamos o colono e o colonialismo. Vocês
foram requisitá-la novamente. E hoje, ora vos cria cócegas, ora comichão. Esse
pseudo-libertador hipotecou o pouco de liberdade que lhes restava. Na nossa
ignorância, tivemos uma escolha. Lutamos pela mudança. E conseguimos. Agora vocês
não sabem se querem mudar ou não. Se o colonizador tivesse encontrado a vocês
naquele tempo, até hoje haveria escravatura. Alguém apelidou-lhes de Geração da
Viragem. Vocês não são nenhuma geração. Uma geração é guiada por objectivos,
princípios, propósitos e problemas comuns. E vocês não têm nada disso. São sim
um problema comum. Vocês são o maior problema da nação. Voluntariamente pontapearam
a nossa língua, a nossa cultura, a nossa história e a maior herança ancestral
que são os valores que nos identificam como um povo uno e único. Vocês destruíram
tudo por causa da ambição de serem pequenos burgueses negros. Que pena, Muzaia.
Vocês são a maior perdição do nosso país. Vai correndo e traz-me o rapé!
-
Volto já vovô! Ainda não terminamos a conversa. Até porque vocês foram
dominados também pela igreja. Mal ouviram falar de Deus passaram a viver de
evangelho. Mas já vamos falar sobre isso. Fuii….
O vovó é carinhoso... atendeu ao seu pedido (e à sua ignorância) sobre o uso de voce(s) no lugar de vós. kkkk
ResponderEliminarMe surpreende que o calhambeque que é não tenha esperado o rapé para pegar... Aguardando pela conversa após o rapé...anciosamente.
Amei a conversa
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