Discussão terminológica das Literaturas dos PALOPs
A questão da nomenclatura das literaturas que acontecem no espaço geopolítico e sociocultural moçambicano, e de outros países de expressão portuguesa é alvo de controvérsias. A primeira concepção surge durante a vigência colonial, em que se usavam expressões como Literaturas da África Portuguesa, Literatura Ultramarina ou ainda Literatura Ultramarina de Portugal, posteriormente designadas de Literaturas Negra, por influência da Negritude, (Oliveira 1962; Císar 1967; apud Silva 2010:22). Todavia, Margarido (1980) apud Silva (2010) traz uma perspectiva diferente ao defini-las, primeiramente como Poesia Negra de Expressão Portuguesa, tempos mais tarde passou a designá-las de Literaturas das Nações Africanas de Língua Portuguesa, ou ainda Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, na tentativa de autonomizar as literaturas praticadas em Angola, Moçambique, São-Tomé, Cabo-Verde e Guiné, distanciando-se, desse modo, da Literatura Portuguesa. Esta designação é também empregue por Mendonça (1988) na apresentação da sua obra Literatura Moçambicana: História das Escritas. Outro teorizador que apresenta a sua contribuição é Hamilton (1981) que dentre várias opções por ele examinadas, pauta pela nomenclatura de Literaturas Lusófonas, pois, acredita ser esta uma terminologia livre de conotações colonialistas. Entretanto, esta posição é refutada por Ferreira (1987), uma vez que, para este autor o termo «lusofonia» está estritamente ligado a contaminações coloniais. Deste modo, Ferreira (1987), à semelhança de Margarido (1980), prima pela designação de Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, terminologia também adoptada pelo professor Pires Laranjeira (1995).
Silva
(2010) refere que na academia brasileira, estas literaturas são estudadas num
vasto conjunto considerado Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Com
efeito, nos últimos tempos, a designação de Literaturas Africanas de Expressão/
Língua Portuguesa é privilegiada, pois, o termo expressão está virada para o
plano da língua, e desprovida de compromissos coloniais. Devemos salientar que
todas as tentativas de autonomizar estas literaturas, distanciando-as da sua
ligação umbilical com o passado colonial redundam num fracasso visto que, a
língua na qual se manifesta o plano de expressão, de per si, é uma herança inequívoca da dominação colonial que se
manifestou a nível político, ideológico, sociocultural e linguístico.
Outrossim, esta denominação acarreta índices de segregacionismo, dado que olha
apenas àquela Literatura produzida desde a chegada dos europeus, durante e sob
a dominação colonial, e pós-colonial, olhando simplesmente para o plano de
expressão em Língua portuguesa (em alguns casos conjugado com as línguas
moçambicanas), relegando a literatura oral (que é maioritariamente produzida em
línguas moçambicanas).
Sobre a historiografia da Literatura Moçambicana
Lajolo
(1994) apud Silva (2010:59) lembra
que a historiografia literária, tal como é praticada hoje, procura organizar
autores, obras e estilos de forma cronológica, formando conjuntos cujos
recortes são baseados não só em critérios literários, como em critérios
extraliterários, que se definem como um recorte da vida social. Segundo a
autora aqui mencionada, qualquer que seja o critério de agrupamento adoptado, o
historiador da literatura acaba por eleger algumas obras e autores em
detrimento de outros, colaborando para a constituição de um cânone que se
repete, via de regra, nos diferentes compêndios de historiografia literária de
uma dada nação.
A
história literária depara com problemas de apurar a história da literatura
enquanto arte em relativa separação da sua história social, das biografias dos
escritores ou análise das obras específicas (Wellek & Warren, 1949:316).
Para secundar esta ideia, Silva (2010) refere que em Moçambique, a história da
literatura foi-se construindo ao mesmo tempo que se dava a consolidação da
nação. A autora defende que para tanto, as marcas recorrentes para delimitação
dos períodos da literatura moçambicana, segundo vários estudiosos, são factos
de ordem histórica, em conformidade com Wellek & Warren (1949) que atestam
a existência de grande parte de histórias literárias cuja divisão periódica
tomou em consideração mudanças políticas, para o caso de Moçambique, eventos
como a colonização, o assimilacionismo, a negritude, a luta de libertação
nacional, a independência marcam a delimitação periodológica, daí que surgem termos
como literatura colonial, literatura de combate/contestação/protesto. Mendonça
(1988) pauta por uma perspectiva diferente, recorrendo directamente à datação
histórica para indicar os diferentes períodos da literatura moçambicana. Com
efeito, esta literatura é concebida estritamente determinada pelas revoluções
político-sociais de uma nação, Wellek & Warren (1949:328), entretanto, os
autores mencionados contestam este procedimento, pois, argumentam que a literatura não deve ser concebida
meramente como um passivo reflexo ou cópia do desenvolvimento político, social
ou mesmo intelectual da humanidade (Wellek & Warren (1949:330). Para
tanto, a fixação dos períodos deve ser feita em função de critérios puramente literários. Nesta torrente de ideia, cada
mudança de convenção literária seria causada pelo surto de uma nova classe,
geração ou grupo de pessoas que crie a sua própria classe, porém, no contexto
moçambicano, surge o conceito de geração[1] no
final do primeiro quartel do Séc. XX, com a aparição dos irmãos Albasini (João
e José Albasini), Rui de Noronha entre outros catapultados pela imprensa, como
refere Goenha (2010:9), evolução da
literatura escrita em Moçambique tem necessariamente uma ligação directa com o
surgimento da Imprensa. Uma segunda geração surge no final da Segunda
Guerra Mundial, a geração formadora da Moderna Literatura Moçambicana, no seio
da qual se destacam: José Craveirinha, Noémia de Sousa, Orlando Mendes, João
Dias, Rui Knopli, Rui Guerra, Rui Nogar, Virgílio de Lemos, (Laranjeira,
1995:261). Deste modo, podemos concluir que a questão da delimitação
periodológica da Literatura Moçambicana é ofuscada também pelo facto de não
haver classes/ escolas/ movimentos/ correntes literárias antes do período
colonial. Porém, em função das incessantes discussões sobre a jovem Literatura
Moçambicana, podemos dividi-la em três grandes épocas, (tomando em consideração
que as épocas seguem-se umas às outras):
ü Época pré-colonial
– que compreende todas as manifestações literárias tradicionais, caracterizadas
pelas narrativas orais, provérbios, adivinhas e outras práticas ancestrais, até
à chegada dos colonizadores. Nesta época não se podem delimitar períodos, pois,
não existem documentos nem gravações que permitam fazer uma radiografia sobre
as temáticas bem como a estética desta produção literária;
ü Época colonial (desde
a chegada dos portugueses Séc. XV até à Independência de Moçambique) – que
compreende todas manifestações havidas durante a vigência e dominação colonial
(Literatura Colonial[2]).
Devemos referir que, em conformidade com Carlos Reis (2008), os períodos podem
acontecer em paralelo. Deste modo, durante a vigência colonial existe uma
literatura inicial, a chamada Literatura das Viagens, constituída por
documentos, relatórios sobre as novas terras descobertas. Numa segunda fase,
ocorre a literatura designada oitocentista, influenciada pela terceira geração
do romantismo português. Fazem parte desta época a literatura de cunho
proto-nacionalista levada a cabo pelos irmãos Albasini, Rui de Noronha e
outros, bem como a do cunho nacionalista e combativo da geração Craveirinha e
Noémia de Sousa, e ainda a Literatura de Combate da geração de Kalungano, Jorge
Rebelo, Armando Guebuza. Esta literatura é assumida por diferentes
protagonistas, sob ponto de vista de autores, destinatários e receptores.
ü Época pós-colonial (desde
a proclamação da independência até à primeira década do Séc. XXI) – esta época
agrega todas as publicações de cariz ideológica, de produções comprometidas com
a causa revolucionária e exaltação da pátria. Agrega ainda a Literatura
intimista e experimentalista que surge na década de 90, bem como a produção
literária que expressa a desilusão com os novos regimes instalados nos países
recém-libertos. A pós-colonialidade manifesta-se de diversas formas, pois,
escritores emergentes não possuem uma linha ou orientação literária fixa, o que
nos leva a inferir, em conformidade com Goenha (2010): que a diversidade estilística das escritas da literatura moçambicana; a não
existência, até ao momento de uma teorização consolidada da História da Literatura Moçambicana; a
ausência de uma política de edição/publicação de textos literários; a inexistência de uma crítica literária reguladora;
são alguns factores que concorrem para a enfraquecimento da escrita literária
moçambicana.
Julgamos
pertinente mencionar o mérito dos historiógrafos da Literatura Moçambicana,
pois, nos seus estudos tomaram como base o rastreio das obras literárias
consoante os géneros, os tipos estilísticos, as tradições linguísticas adentro
de um esquema de Literatura Universal, como recomendam Wellek & Warren
(1949). Ainda com relação ao debate sobre a Moderna Literatura Moçambicana, há
que tomar em consideração dois aspectos fundamentais, dentre os quais queremos
destacar a universalidade versus especificidade, como atesta Goenha (2010:36).
Segundo o autor:
Universalidade tem a ver com a preocupação em
ultrapassar barreiras nacionais. É uma literatura que se pode integrar, em
termos de recepção, em qualquer quadrante; integra-se na universalidade,
focando-se, por exemplo, o homem numa perspectiva universal. É de notar que a
literatura pode ter um carácter específico, mas ser de dimensão universal,
aliás, um dos factores da universalidade é a sua especificidade, desde que a
obra transcenda o regional. A especificidade, assim como a
universalidade, têm factores subjectivos. As instâncias receptoras ou,
de uma maneira geral, as instituições literárias é que tornam
a obra universal, promovem-na, neste sentido, são estas instituições,
basicamente, que definem a universalidade da obra
(Goenha 2010:36).
Como
se pode compreender, a necessidade de transpor as fronteiras nacionais, a
Literatura Moçambicana a partir da década de 80 começa a trilhar os caminhos da
pos-colonialidade, pelo que, passamos a discutir esta perspectiva à luz da
produção literária comprometida com o estado pós-colonial.
A Pos-colonialidade na Literatura Moçambicana
A partir dos anos 70 surge um incessante interesse
pela crítica pós-colonial, que se preocupou com a preservação e documentação da
literatura produzida pelos povos outrora banalizados como exóticos, selvagens e
não civilizados em função das intenções coloniais dos europeus; pela
recuperação das fontes alternativas da força cultural de povos colonizados e; pelo
reconhecimento das distorções produzidas pelo imperialismo e ainda mantidas
pelo sistema capitalista actual. Posteriormente, nas décadas de oitenta e noventa,
como atesta Hamilton (1999), nota-se um crescente interesse
na pós-colonialidade e na teoria pós-colonial, com destaque para os livros e
artigos publicados por diversos estudiosos[1]
nos Estados Unidos e na Inglaterra.
Estas
teorias, para além do conhecimento das ciências sociais, são buscadas para
analisar a literatura produzida nas ex-colónias, pois, a emergência e o desenvolvimento de literaturas
pós-coloniais dependem de dois factores importantes: as etapas de
conscientização nacional e a asserção de serem diferentes da literatura do
centro imperial. A primeira etapa envolve textos literários que foram
produzidos por representantes do poder colonizador. A segunda etapa envolve
textos literários escritos sob supervisão imperial por nativos que receberam
sua educação na metrópole e que se sentiam gratificados em poder escrever na
língua do europeu. A terceira etapa envolve uma gama de textos, a partir de certo grau de
diferenciação até uma total ruptura com os padrões emanados pela metrópole.
Evidentemente, essas literaturas dependiam da ab-rogação do poder restritivo e
da apropriação da linguagem/escrita para fins diferentes daqueles pelos quais
outrora foram usados, (Bonicci, 1998).
Bonicci
(1998) apud (Ashcroft et al.,
1991)
traz-nos dois conceitos fundamentais no que à literatura pos-colonial concerne:
a ab-rogação e a apropriação. Na
perspectiva do autor, a ab-rogação é a recusa das
categorias da cultura imperial, de sua estética, de seu padrão normativo e de
uso correto, bem como de sua exigência de fixar o significado das palavras. É
um momento da descolonização do idioma europeu. A apropriação consiste
num fenómeno através do qual o idioma é apropriado e obrigado a carregar o peso
da experiência da cultura marginalizada. Como o idioma é um instrumento
ideologicamente carregado, o autor pós-colonial sempre se encontra numa
verdadeira tensão entre os pólos da ab-rogação do idioma recebido da metrópole
e da apropriação que submete o idioma a uma versão popular, atrelado ao lugar e
às circunstâncias históricas. Para tanto, na Literatura Moçambicana
Pos-colonial, é notória a apropriação da Língua Portuguesa mesclada com a
cultura e ideologia Bantu, como podemos notar na criação linguística de Mia
Couto, bem como na integração deste idioma na tradução e interpretação de
provérbios e «improvérbios» como argumenta a professora Fernanda Cavacas na sua
obra «Mia Couto: Pensatempos e improvérbios».
Hamilton (1999) aponta que nos PALOP, seguindo-se à
vitória dos respectivos movimentos de libertação (após as independências),
surgiu uma literatura que celebrava a derrota do regime colonial, proclamava a
revolução social e celebrava a (re) construção
nacional. Juntamente com uma expressão
literária abertamente circunstancial, na forma de obras patrióticas e
nativistas, também começava a aparecer, nos primeiros anos após a
independência, uma literatura intimista, experimentalista e reformista. Na
categoria da literatura séria, em
contraste com as obras politicamente comprometidas, circunstanciais e mesmo
panfletárias, verificava-se uma tendência entre escritores nacionais a
re-escrever e assim re-inventar a África e os seus respectivos países, tanto do
período pré-colonial como colonial. Surgiam um neotradicionalismo e
neo-nativismo. Nota-se uma crescente tendência a re-mitificar a história da
nação moçambicana. Alguns exemplos desta re-mitificação do passado histórico
verificam-se nos romances dos moçambicanos Ungulani Ba Ka Khosa, em Ualalapi,
no âmbito das re-mitificações pós-coloniais, Mia Couto, no seu Terra
Sonâmbula, re-mitifica a longa e sangrenta guerra civil, que faz parte da
história pós-colonial de Moçambique.
Outro elemento fundamental na literatura moçambicana
pos-colonial prende-se com o hibridismo. Os escritores revisitam as tradições
ancestrais da moçambicanidade e conjugam com os ventos da modernidade.
Referências
bibliográficas
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BHABHA, H. K.. «A questão outra», in Descolonizar a ‘Europa’,
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FERREIRA, M.. O Discurso no Percurso
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GOENHA, A. M.. Textes des
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LARANJEIRA, J.
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MENDONÇA, F.. Literatura Moçambicana: as histórias e
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REIS, C.. O Conhecimento da Literatura: Introdução aos
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SILVA, A. C. da. A Literatura Moçambicana e a Obra de Mia Couto. São Paulo, Editora
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WELLEK, W. & WARREN, A.. Teoria da Literatura. 5ª Ed.. Nova
Iorque, Biblioteca Universitária, 1949.
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