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terça-feira, 14 de março de 2017

A Historiografia da Literatura Mocambicana


Discussão terminológica das Literaturas dos PALOPs


A questão da nomenclatura das literaturas que acontecem no espaço geopolítico e sociocultural moçambicano, e de outros países de expressão portuguesa é alvo de controvérsias. A primeira concepção surge durante a vigência colonial, em que se usavam expressões como Literaturas da África Portuguesa, Literatura Ultramarina ou ainda Literatura Ultramarina de Portugal, posteriormente designadas de Literaturas Negra, por influência da Negritude, (Oliveira 1962; Císar 1967; apud Silva 2010:22). Todavia, Margarido (1980) apud Silva (2010) traz uma perspectiva diferente ao defini-las, primeiramente como Poesia Negra de Expressão Portuguesa, tempos mais tarde passou a designá-las de Literaturas das Nações Africanas de Língua Portuguesa, ou ainda Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, na tentativa de autonomizar as literaturas praticadas em Angola, Moçambique, São-Tomé, Cabo-Verde e Guiné, distanciando-se, desse modo, da Literatura Portuguesa. Esta designação é também empregue por Mendonça (1988) na apresentação da sua obra Literatura Moçambicana: História das Escritas. Outro teorizador que apresenta a sua contribuição é Hamilton (1981) que dentre várias opções por ele examinadas, pauta pela nomenclatura de Literaturas Lusófonas, pois, acredita ser esta uma terminologia livre de conotações colonialistas. Entretanto, esta posição é refutada por Ferreira (1987), uma vez que, para este autor o termo «lusofonia» está estritamente ligado a contaminações coloniais. Deste modo, Ferreira (1987), à semelhança de Margarido (1980), prima pela designação de Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, terminologia também adoptada pelo professor Pires Laranjeira (1995).

Silva (2010) refere que na academia brasileira, estas literaturas são estudadas num vasto conjunto considerado Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Com efeito, nos últimos tempos, a designação de Literaturas Africanas de Expressão/ Língua Portuguesa é privilegiada, pois, o termo expressão está virada para o plano da língua, e desprovida de compromissos coloniais. Devemos salientar que todas as tentativas de autonomizar estas literaturas, distanciando-as da sua ligação umbilical com o passado colonial redundam num fracasso visto que, a língua na qual se manifesta o plano de expressão, de per si, é uma herança inequívoca da dominação colonial que se manifestou a nível político, ideológico, sociocultural e linguístico. Outrossim, esta denominação acarreta índices de segregacionismo, dado que olha apenas àquela Literatura produzida desde a chegada dos europeus, durante e sob a dominação colonial, e pós-colonial, olhando simplesmente para o plano de expressão em Língua portuguesa (em alguns casos conjugado com as línguas moçambicanas), relegando a literatura oral (que é maioritariamente produzida em línguas moçambicanas).

Sobre a historiografia da Literatura Moçambicana

Lajolo (1994) apud Silva (2010:59) lembra que a historiografia literária, tal como é praticada hoje, procura organizar autores, obras e estilos de forma cronológica, formando conjuntos cujos recortes são baseados não só em critérios literários, como em critérios extraliterários, que se definem como um recorte da vida social. Segundo a autora aqui mencionada, qualquer que seja o critério de agrupamento adoptado, o historiador da literatura acaba por eleger algumas obras e autores em detrimento de outros, colaborando para a constituição de um cânone que se repete, via de regra, nos diferentes compêndios de historiografia literária de uma dada nação.
A história literária depara com problemas de apurar a história da literatura enquanto arte em relativa separação da sua história social, das biografias dos escritores ou análise das obras específicas (Wellek & Warren, 1949:316). Para secundar esta ideia, Silva (2010) refere que em Moçambique, a história da literatura foi-se construindo ao mesmo tempo que se dava a consolidação da nação. A autora defende que para tanto, as marcas recorrentes para delimitação dos períodos da literatura moçambicana, segundo vários estudiosos, são factos de ordem histórica, em conformidade com Wellek & Warren (1949) que atestam a existência de grande parte de histórias literárias cuja divisão periódica tomou em consideração mudanças políticas, para o caso de Moçambique, eventos como a colonização, o assimilacionismo, a negritude, a luta de libertação nacional, a independência marcam a delimitação periodológica, daí que surgem termos como literatura colonial, literatura de combate/contestação/protesto. Mendonça (1988) pauta por uma perspectiva diferente, recorrendo directamente à datação histórica para indicar os diferentes períodos da literatura moçambicana. Com efeito, esta literatura é concebida estritamente determinada pelas revoluções político-sociais de uma nação, Wellek & Warren (1949:328), entretanto, os autores mencionados contestam este procedimento, pois, argumentam que a literatura não deve ser concebida meramente como um passivo reflexo ou cópia do desenvolvimento político, social ou mesmo intelectual da humanidade (Wellek & Warren (1949:330). Para tanto, a fixação dos períodos deve ser feita em função de critérios puramente literários. Nesta torrente de ideia, cada mudança de convenção literária seria causada pelo surto de uma nova classe, geração ou grupo de pessoas que crie a sua própria classe, porém, no contexto moçambicano, surge o conceito de geração[1] no final do primeiro quartel do Séc. XX, com a aparição dos irmãos Albasini (João e José Albasini), Rui de Noronha entre outros catapultados pela imprensa, como refere Goenha (2010:9), evolução da literatura escrita em Moçambique tem necessariamente uma ligação directa com o surgimento da Imprensa. Uma segunda geração surge no final da Segunda Guerra Mundial, a geração formadora da Moderna Literatura Moçambicana, no seio da qual se destacam: José Craveirinha, Noémia de Sousa, Orlando Mendes, João Dias, Rui Knopli, Rui Guerra, Rui Nogar, Virgílio de Lemos, (Laranjeira, 1995:261). Deste modo, podemos concluir que a questão da delimitação periodológica da Literatura Moçambicana é ofuscada também pelo facto de não haver classes/ escolas/ movimentos/ correntes literárias antes do período colonial. Porém, em função das incessantes discussões sobre a jovem Literatura Moçambicana, podemos dividi-la em três grandes épocas, (tomando em consideração que as épocas seguem-se umas às outras):
ü  Época pré-colonial – que compreende todas as manifestações literárias tradicionais, caracterizadas pelas narrativas orais, provérbios, adivinhas e outras práticas ancestrais, até à chegada dos colonizadores. Nesta época não se podem delimitar períodos, pois, não existem documentos nem gravações que permitam fazer uma radiografia sobre as temáticas bem como a estética desta produção literária;
ü  Época colonial (desde a chegada dos portugueses Séc. XV até à Independência de Moçambique) – que compreende todas manifestações havidas durante a vigência e dominação colonial (Literatura Colonial[2]). Devemos referir que, em conformidade com Carlos Reis (2008), os períodos podem acontecer em paralelo. Deste modo, durante a vigência colonial existe uma literatura inicial, a chamada Literatura das Viagens, constituída por documentos, relatórios sobre as novas terras descobertas. Numa segunda fase, ocorre a literatura designada oitocentista, influenciada pela terceira geração do romantismo português. Fazem parte desta época a literatura de cunho proto-nacionalista levada a cabo pelos irmãos Albasini, Rui de Noronha e outros, bem como a do cunho nacionalista e combativo da geração Craveirinha e Noémia de Sousa, e ainda a Literatura de Combate da geração de Kalungano, Jorge Rebelo, Armando Guebuza. Esta literatura é assumida por diferentes protagonistas, sob ponto de vista de autores, destinatários e receptores.
ü  Época pós-colonial (desde a proclamação da independência até à primeira década do Séc. XXI) – esta época agrega todas as publicações de cariz ideológica, de produções comprometidas com a causa revolucionária e exaltação da pátria. Agrega ainda a Literatura intimista e experimentalista que surge na década de 90, bem como a produção literária que expressa a desilusão com os novos regimes instalados nos países recém-libertos. A pós-colonialidade manifesta-se de diversas formas, pois, escritores emergentes não possuem uma linha ou orientação literária fixa, o que nos leva a inferir, em conformidade com Goenha (2010): que a diversidade estilística das escritas da literatura moçambicana; a não existência, até ao momento de uma teorização consolidada da História da Literatura Moçambicana; a ausência de uma política de edição/publicação de textos literários; a inexistência de uma crítica literária reguladora; são alguns factores que concorrem para a enfraquecimento da escrita literária moçambicana.
Julgamos pertinente mencionar o mérito dos historiógrafos da Literatura Moçambicana, pois, nos seus estudos tomaram como base o rastreio das obras literárias consoante os géneros, os tipos estilísticos, as tradições linguísticas adentro de um esquema de Literatura Universal, como recomendam Wellek & Warren (1949). Ainda com relação ao debate sobre a Moderna Literatura Moçambicana, há que tomar em consideração dois aspectos fundamentais, dentre os quais queremos destacar a universalidade versus especificidade, como atesta Goenha (2010:36). Segundo o autor:
Universalidade tem a ver com a preocupação em ultrapassar barreiras nacionais. É uma literatura que se pode integrar, em termos de recepção, em qualquer quadrante; integra-se na universalidade, focando-se, por exemplo, o homem numa perspectiva universal. É de notar que a literatura pode ter um carácter específico, mas ser de dimensão universal, aliás, um dos factores da universalidade é a sua especificidade, desde que a obra transcenda o regional. A especificidade, assim como a universalidade, têm factores subjectivos. As instâncias receptoras ou, de uma maneira geral, as instituições literárias é que tornam a obra universal, promovem-na, neste sentido, são estas instituições, basicamente, que definem a universalidade da obra (Goenha 2010:36).
Como se pode compreender, a necessidade de transpor as fronteiras nacionais, a Literatura Moçambicana a partir da década de 80 começa a trilhar os caminhos da pos-colonialidade, pelo que, passamos a discutir esta perspectiva à luz da produção literária comprometida com o estado pós-colonial.

A Pos-colonialidade na Literatura Moçambicana 

A partir dos anos 70 surge um incessante interesse pela crítica pós-colonial, que se preocupou com a preservação e documentação da literatura produzida pelos povos outrora banalizados como exóticos, selvagens e não civilizados em função das intenções coloniais dos europeus; pela recuperação das fontes alternativas da força cultural de povos colonizados e; pelo reconhecimento das distorções produzidas pelo imperialismo e ainda mantidas pelo sistema capitalista actual. Posteriormente, nas décadas de oitenta e noventa, como atesta Hamilton (1999), nota-se um crescente interesse na pós-colonialidade e na teoria pós-colonial, com destaque para os livros e artigos publicados por diversos estudiosos[1] nos Estados Unidos e na Inglaterra.
Estas teorias, para além do conhecimento das ciências sociais, são buscadas para analisar a literatura produzida nas ex-colónias, pois, a emergência e o desenvolvimento de literaturas pós-coloniais dependem de dois factores importantes: as etapas de conscientização nacional e a asserção de serem diferentes da literatura do centro imperial. A primeira etapa envolve textos literários que foram produzidos por representantes do poder colonizador. A segunda etapa envolve textos literários escritos sob supervisão imperial por nativos que receberam sua educação na metrópole e que se sentiam gratificados em poder escrever na língua do europeu. A terceira etapa envolve uma gama de textos, a partir de certo grau de diferenciação até uma total ruptura com os padrões emanados pela metrópole. Evidentemente, essas literaturas dependiam da ab-rogação do poder restritivo e da apropriação da linguagem/escrita para fins diferentes daqueles pelos quais outrora foram usados, (Bonicci, 1998).
Bonicci (1998) apud (Ashcroft et al., 1991) traz-nos dois conceitos fundamentais no que à literatura pos-colonial concerne: a ab-rogação e a apropriação. Na perspectiva do autor, a ab-rogação é a recusa das categorias da cultura imperial, de sua estética, de seu padrão normativo e de uso correto, bem como de sua exigência de fixar o significado das palavras. É um momento da descolonização do idioma europeu. A apropriação consiste num fenómeno através do qual o idioma é apropriado e obrigado a carregar o peso da experiência da cultura marginalizada. Como o idioma é um instrumento ideologicamente carregado, o autor pós-colonial sempre se encontra numa verdadeira tensão entre os pólos da ab-rogação do idioma recebido da metrópole e da apropriação que submete o idioma a uma versão popular, atrelado ao lugar e às circunstâncias históricas. Para tanto, na Literatura Moçambicana Pos-colonial, é notória a apropriação da Língua Portuguesa mesclada com a cultura e ideologia Bantu, como podemos notar na criação linguística de Mia Couto, bem como na integração deste idioma na tradução e interpretação de provérbios e «improvérbios» como argumenta a professora Fernanda Cavacas na sua obra «Mia Couto: Pensatempos e improvérbios».
Hamilton (1999) aponta que nos PALOP, seguindo-se à vitória dos respectivos movimentos de libertação (após as independências), surgiu uma literatura que celebrava a derrota do regime colonial, proclamava a revolução social e celebrava a (re) construção nacional. Juntamente com uma expressão literária abertamente circunstancial, na forma de obras patrióticas e nativistas, também começava a aparecer, nos primeiros anos após a independência, uma literatura intimista, experimentalista e reformista. Na categoria da literatura séria, em contraste com as obras politicamente comprometidas, circunstanciais e mesmo panfletárias, verificava-se uma tendência entre escritores nacionais a re-escrever e assim re-inventar a África e os seus respectivos países, tanto do período pré-colonial como colonial. Surgiam um neotradicionalismo e neo-nativismo. Nota-se uma crescente tendência a re-mitificar a história da nação moçambicana. Alguns exemplos desta re-mitificação do passado histórico verificam-se nos romances dos moçambicanos Ungulani Ba Ka Khosa, em Ualalapi, no âmbito das re-mitificações pós-coloniais, Mia Couto, no seu Terra Sonâmbula, re-mitifica a longa e sangrenta guerra civil, que faz parte da história pós-colonial de Moçambique.
Outro elemento fundamental na literatura moçambicana pos-colonial prende-se com o hibridismo. Os escritores revisitam as tradições ancestrais da moçambicanidade e conjugam com os ventos da modernidade. 


Referências bibliográficas
AGUIAR & SILVA, V. M. de. Teoria da Literatura. 8ª ed. Coimbra, Almedina, 1992.
BHABHA, H. K.. «A questão outra», in Descolonizar a ‘Europa’, Antropologia, Arte, Literatura e História na pós-colonialidade (ENSAIO – Organização de Manuela Ribeiro Sanches), Lisboa, Livros Cotovia, Lda., 2005.
BONNICI, T.. Introdução ao Estudo das Literaturas Pós-Coloniais. Mimesis, Bauru. 1998.
FERREIRA, M.. O Discurso no Percurso Africano I; contributo para uma estética africana, Lisboa, Plátano, D.L., 1987.
GOENHA, A. M.. Textes des quatre conférences données à l’Université PARIS 8. Universidade Pedagógica, Maputo, 2010.
LARANJEIRA, J. P.. Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa. Lisboa, Universidade Aberta, 1995.
MENDONÇA, F.. Literatura Moçambicana: as histórias e escritas. Maputo, Imprensa Universitária, 1988.
REIS, C.. O Conhecimento da Literatura: Introdução aos Estudos Literários. 2a Edição, Coimbra, Almedina, 2008.
SILVA, A. C. da. A Literatura Moçambicana e a Obra de Mia Couto. São Paulo, Editora UNESP, 2010.  
WELLEK, W. & WARREN, A.. Teoria da Literatura. 5ª Ed.. Nova Iorque, Biblioteca Universitária, 1949.



[1] Dentre vários estudiosos destacam-se Edward Said e Kwame Anthony Appiah.

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