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sábado, 4 de março de 2017

Regência dos verbos de significação oposta



A questão da regência verbal é um assunto bastante complexo mas útil para a correcção linguística no que se refere à competência comunicativa. A partir deste artigo, pretendemos analisar o conhecimento gramatical dos utentes das redes sociais, concretamente os conhecimentos sobre a regência de verbos de significação oposta.
A proposta do tema está estritamente relacionada com o facto de se ter tornado comum ouvir construções do tipo:
a)    *Concordo com a tua ideia. Mas discordo com a ideia do António.
b)    *O Manuel apareceu na igreja, depois de ter desaparecido em casa.
Estas construções são habituais em conversas coloquiais, porém, são também ouvidas em ambientes académicos e em órgãos de comunicação social. Com efeito, produzimos o presente artigo que assenta em duas teorias fundamentais, nomeadamente a Teoria de Regência Verbal e a Gramática de Valências. Para o entendimento da essência de cada uma destas teorias, julgamos pertinente dissertar sobre os seus princípios.

Teoria de Regência
Por regência entende-se, tradicionalmente, a propriedade que têm os verbos de exigirem complementos, preposicionados ou não, classificados como Objectos (Directos ou Indirectos). DUARTE (2014:2) refere que se concebe a regência como sendo a dependência entre os termos regentes (ou subordinantes) e regidos (ou subordinados). PERINI (2001), ao dissertar sobre o fenómeno da regência, afirma que as estruturas sintácticas se compõem de constituintes organizados em orações segundo certos princípios, um dos quais refere que cada elemento desempenha uma função sintáctica na oração. O autor reduz a regência ao campo sintáctico, ignorando a semântica no processo de selecção categorial dos constituintes oracionais. Destarte, buscamos bases teóricas da Gramática de Valências.

Gramática de Valências

A teoria da Gramática de Valências foi inicialmente proposta por Lucien Tesnière (1959), desenvolvida posteriormente na Alemanha, e introduzida no Português por BUSSE & VILELA (1986). Esta teoria concebe o verbo como o elemento central da frase e trata a relação entre esse centro e os demais elementos dependentes sob dois pontos de vista: um sintáctico e outro semântico.
BUSSE & VILELA (1986) consideram valência ao número de lugares vazios previstos e implicados pelo (significado do) lexema. Atestam ainda que são precisamente os verbos que apresentam, de modo mais evidente, estruturas relacionais do tipo valencial. Na mesma perspectiva, AZEREDO (2002:172) define valência do verbo como o conjunto das posições estruturais que irradiam desse verbo.
Por lugar vazio ou argumento, entende-se como sendo o termo contido na estrutura de outro termo. A cada um dos lugares vazios previstos pelo significado do verbo, representados com aquelas variáveis, a gramática de valências chama actantes. Deste modo, a título de exemplo, o verbo dar prevê três lugares vazios ou actantes (A): o primeiro corresponde ao “dador” (sujeito/ A1); o segundo, ao “dado” (objecto directo/ A2); o terceiro, ao “recebedor” (objecto indirecto/ A3). Assim, a estrutura relacional ou valencial do verbo pode ser formalizada mediante variáveis como x, y e z. A estrutura relacional de um verbo como dar é formalizada como X dá Y a Z. O verbo beber, por exemplo, apresenta a seguinte estrutura relacional: X bebe Y.
É importante referir que o termo valência aplica-se a classes de palavras que apresentam significado lexical, ou seja, ao significado que corresponde à organização do mundo extralinguístico mediante as línguas, nomeadamente: ao verbo, substantivo, adjectivo às vezes ao advérbio (BECHARA, 2002:109).
O termo actantes aplica-se a uma gama de complementos do verbo da gramática tradicional, entre os quais incluem-se o objecto directo, o objecto indirecto, o complemento relativo, etc.. Alguns dos chamados “adjuntos adverbiais” da gramática tradicional são classificados na teoria de valências como circunstantes.
No que toca à centralidade do verbo na teoria de valências, cumpre destacar que o verbo (predicado) não só é responsável por determinar o número de lugares vazios, bem como por determinar morfossintáctica e semanticamente os seus actantes. Assim, de acordo com o número de lugares vazios, há verbos que prevêem apenas um lugar vazio (monovalentes); outros que prevêem dois lugares vazios (bivalentes); e outros que prevêem três lugares vazios (trivalentes), e em alguns casos verbos que prevêem quatro lugares (tetravalentes) caso de X traduzir alguma coisa de Y para Z). Também há verbos que não prevêem algum lugar vazio (avalentes).
Ainda ancorados na teoria valencial, ressalte-se que a nível morfossintáctico, o verbo é que determina a marca ou ausência de marca preposicional nos seus actantes. Sob perspectiva estritamente sintáctica, é o verbo que determina a pronominalização. Destarte, certos actantes são passíveis de substituição por um pronome de acordo com o verbo de que dependem.
1.    O Pedro obedece ao pai.
Na construção acima, o termo [ao pai] pode ser substituído por [lhe] ou pela forma tónica [a ele].
2.    O Pedro recorreu ao pai.
Todavia, neste exemplo, o termo [ao pai] não admite substituição por [lhe], senão pela forma [a ele]. Portanto, embora o pronome «lhe» cliticize, via de regra, estruturas introduzidas pela preposição «a», casos há em que não é possível o emprego dessa forma pronominal, em virtude da natureza do verbo. Certos verbos rejeitam o emprego do pronome recto «lhe», como, por exemplo, «assistir» quando significa ver ou presenciar.

Valência dos verbos «concordar/discordar» e «aparecer/desaparecer»
Os verbos «concordar/discordar» são quantitativamente bivalentes, i. e., apresentam dois lugares vazios para o preenchimento pelos respectivos argumentos. A nível morfossintáctico estes verbos seleccionam um argumento SN que funciona como Sujeito e um argumento SP que funciona como Objecto Directo, numa construção do tipo X concorda com Y.
1.    O João concorda com a opinião do Manuel.
Como se pode notar, o SN [O João] desempenha a função sintáctica de Sujeito e o SP introduzido pela preposição [com] integrando um SN2 desempenha a função sintáctica de Objecto Directo. Esta situação é verificável também usando o verbo oposto [discordar] que nos sugere uma construção do tipo X discorda de Y.
2.    O João discorda da opinião do Manuel.
Nesta construção, os argumentos do verbo desempenham as mesmas funções sintácticas dos seleccionados pelo verbo concordar, porém o constituinte nuclear do SP é a preposição [de] ao invés da preposição [com].
Convém observar que «concordar» e «discordar» têm significados opostos. «Concordar», etimologicamente significa aproximar os corações, porém «discordar» é afastá-los, isto é, separá-los. Normalmente os verbos iniciados por [com-/con-] regem complemento introduzido pela preposição “com”, numa espécie de confirmação da relação semântica indicada pelo prefixo (NICOLETI, S/D). Em contrapartida, temos «discordar de», em que o prefixo [dis-] indica afastamento. Esta ideia se reflecte na preposição [de], que introduz o complemento do verbo. O par [com/de] indica aproximação/separação, como se vê em «casar (-se) com alguém» e «divorciar-se ou separar-se de alguém».
Os verbos «aparecer/desaparecer» são também bivalentes, ou seja, são verbos de dois lugares. Seleccionam um argumento SN que desempenha a função sintáctica de Sujeito, e um argumento SP com a função sintáctica de circunstante de lugar que na Gramática Tradicional é considerado Adjunto Adverbial de Lugar. Assim, a valência do verbo [aparecer] constrói-se em X apareceu em Y.
3.    Dinish Satar apareceu em Moçambique.
Na frase, o SN [Dinish Satar] é o primeiro argumento do verbo [aparecer] e o SP [em Moçambique] é o segundo argumento. Note-se que o SP tem como núcleo a preposição [em] que em alguns casos pode estar contraído a um artigo. No entanto, o verbo [desaparecer] apesar de possuir a mesma valência selecciona um argumento SP introduzido pela preposição [de] por razões já apresentadas anteriormente. Deste modo, projecta uma estrutura X desapareceu de Y.
4.    Anibalzinho desapareceu da Cadeia Central.
Deste modo, conclui-se que os verbos em estudo, apesar de possuírem a mesma valência, seleccionando argumentos morfossintaticamente equivalentes, diferem na selecção da preposição introdutora do SP.

Construções estranhas pelos utentes das redes sociais
 Através de um teste escrito a que foram submetidos de forma espontânea por meio de redes sociais (Facebook e Whatssap) simulando conversas sobre temas da actualidade político-social do país, colhemos alguns dados que nos permitiram constatar que os utilizadores das redes sociais dominam a regência dos verbos «concordar» e «aparecer», contudo, desconhecem as propriedades de selecção dos seus opostos «discordar» e «desaparecer».
A partir de um universo de dez informantes submetidos ao teste, apenas três é que demonstraram domínio das propriedades idiossincráticas dos verbos em discussão, porquanto apresentaram construções frásicas gramaticalmente correctas do ponto de vista de selecção da preposição introdutora do segundo argumento como se pode notar nas frases abaixo:
IA[1] (…) concordo com a ideia da realização do encontro entre Nyusi e Dhlakama. (…) mas discordo da indicação de alguns integrantes do grupo das negociações.
Como se pode observar, o informante preencheu correctamente os lugares vazios tanto do verbo «concordar» como do verbo «discordar», respeitando as propriedades de selecção da preposição «com» e «de» respectivamente. Esta proeza foi conseguida pelo informante B, como prova o excerto abaixo:
IB: (…) Guebuza aparece em televisão e ainda faz discursos. Mas a esta altura ele devia ter desaparecido do país devido às polémicas em que se encontra envolvido.
Nesta construção, nota-se a presença dos argumento seleccionados pelos verbos «aparecer» e «desaparecer» sendo um SN Sujeito e um SP com a função sintáctica de circunstante de lugar, respeitando as propriedades de selecção categorial dos verbos em causa, que, no caso vertente seleccionam as preposições «em» e «de» respectivamente.
No entanto, os restantes informantes demonstraram desconhecimento das propriedades idiossincráticas dos verbos de significação contrária, visto que aplicam a mesma preposição para a introdução do SP argumento do verbo em causa, como se pode observar nas construções que se seguem:
IC: Concordo com a necessidade do diálogo ao mais alto nível mas *discordo com a ideia da inclusão dos partidos extraparlamentares. Sobre Guebuza, ele aparece na televisão sempre mas devia *desaparecer no país (…).
ID: Realmente a ideia do encontro entre Dhlakama e Nyusi é boa e concordo com ela, mas discordo *com a presença de mediadores internacionais. Guebuza apareceu na Praça mas devia desaparecer *naquele lugar.
Os excertos acima demonstram as dificuldades enfrentadas por alguns dos informantes que pautam pelo uso da mesma preposição para os verbos de significação contrária, o que contrasta com as propriedades de selecção categorial dos verbos em causa.



Considerações finais
A Gramática de Valências é uma teoria que fundamenta a teoria de regência verbal, visto que demonstra através das valências verbais o número de argumentos seleccionados pelo verbo, trazendo alguns aspectos que superam as limitações da Gramática Tradicional ao discutir a transitividade.
A partir da base teórica da regência verbal, constatamos o desconhecimento das regras de selecção verbal dos verbos de significação oposta por parte dos utilizadores das redes sociais. A partir dos testes a que foram submetidos, depreendemos que usam a mesma preposição para ambos verbos de significação contrária.
Em função destas constatações, julga-se pertinente a integração dos conteúdos sobre a regência verbal nos manuais de Português para permitir que os alunos adquiram conhecimentos sobre as propriedades de selecção categorial dos verbos, durante a sua escolarização, uma vez que, grande parte dos utilizadores das redes sociais são estudantes de diferentes níveis do ensino geral e/ou técnico profissional.


Referências bibliográficas
AZEREDO, J. C. de. Gramática Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo, Publifolha, 2002.
BORBA, F. da S. Uma gramática de valências para o português. São Paulo, Editora Ática, 1996.
BUSSE, W. & VILELA, M. Gramática de valências. Coimbra, Livraria Almedina, 1986.
DUARTE, V. B. da C. Uma análise da regência verbal em livros didácticos do ensino médio. Paraíba, UEPD, 2014.
PERINI, Mário A. Gramática do Português Brasileiro. São Paulo, Parábola, 2001.
TESNIÈRE (1959) In BORBA, Francisco S. Uma Gramática de Valências para o Português. São Paulo, Ática, 1996.



[1] Este é o código adoptado neste trabalho para se referir aos informantes.

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