A
questão da regência verbal é um assunto bastante complexo mas útil para a
correcção linguística no que se refere à competência comunicativa. A partir
deste artigo, pretendemos analisar o conhecimento gramatical dos utentes das
redes sociais, concretamente os conhecimentos sobre a regência de verbos de
significação oposta.
A
proposta do tema está estritamente relacionada com o facto de se ter tornado
comum ouvir construções do tipo:
a) *Concordo
com a tua ideia. Mas discordo com a ideia do António.
b) *O
Manuel apareceu na igreja, depois de ter desaparecido em casa.
Estas
construções são habituais em conversas coloquiais, porém, são também ouvidas em
ambientes académicos e em órgãos de comunicação social. Com efeito, produzimos
o presente artigo que assenta em duas teorias fundamentais, nomeadamente a
Teoria de Regência Verbal e a Gramática de Valências. Para o entendimento da
essência de cada uma destas teorias, julgamos pertinente dissertar sobre os
seus princípios.
Teoria
de Regência
Por regência entende-se, tradicionalmente, a
propriedade que têm os verbos de exigirem complementos, preposicionados
ou não, classificados como Objectos (Directos ou Indirectos). DUARTE (2014:2) refere que se concebe a
regência como sendo a dependência entre os termos regentes (ou
subordinantes) e regidos (ou subordinados). PERINI (2001), ao
dissertar sobre o fenómeno da regência, afirma que as estruturas sintácticas se
compõem de constituintes organizados em orações segundo certos princípios, um
dos quais refere que cada elemento desempenha uma função sintáctica na oração.
O autor reduz a regência ao campo sintáctico, ignorando a semântica no processo
de selecção categorial dos constituintes oracionais. Destarte, buscamos bases
teóricas da Gramática de Valências.
Gramática de Valências
A
teoria da Gramática de Valências foi inicialmente proposta por Lucien Tesnière
(1959), desenvolvida posteriormente na Alemanha, e introduzida no Português por
BUSSE & VILELA (1986). Esta teoria concebe o verbo como o elemento central
da frase e trata a relação entre esse centro e os demais elementos dependentes
sob dois pontos de vista: um sintáctico e outro semântico.
BUSSE & VILELA (1986) consideram valência ao número de lugares vazios previstos e
implicados pelo (significado do) lexema. Atestam ainda que são
precisamente os verbos que apresentam, de modo mais evidente, estruturas
relacionais do tipo valencial. Na mesma perspectiva, AZEREDO (2002:172) define valência do verbo
como o conjunto das posições estruturais que irradiam desse verbo.
Por lugar vazio ou argumento, entende-se
como sendo o termo contido na estrutura
de outro termo. A cada um dos lugares vazios previstos pelo significado do
verbo, representados com aquelas variáveis, a gramática de valências chama actantes.
Deste modo, a título de exemplo, o verbo dar prevê três lugares vazios
ou actantes (A): o primeiro corresponde ao “dador” (sujeito/ A1); o segundo, ao
“dado” (objecto directo/ A2); o terceiro, ao “recebedor” (objecto indirecto/
A3). Assim, a estrutura relacional ou valencial do verbo pode ser formalizada
mediante variáveis como x, y e z. A estrutura relacional de um
verbo como dar é formalizada como X dá Y a Z. O verbo beber, por
exemplo, apresenta a seguinte estrutura relacional: X bebe Y.
É importante referir que o termo valência aplica-se
a classes de palavras que apresentam significado lexical, ou seja, ao
significado que corresponde à organização
do mundo extralinguístico mediante as línguas, nomeadamente: ao verbo,
substantivo, adjectivo às vezes ao advérbio (BECHARA, 2002:109).
O termo actantes aplica-se a uma gama de
complementos do verbo da gramática tradicional, entre os quais incluem-se o
objecto directo, o objecto indirecto, o complemento relativo, etc.. Alguns dos
chamados “adjuntos adverbiais” da gramática tradicional são classificados na
teoria de valências como circunstantes.
No que toca à centralidade do verbo na teoria de
valências, cumpre destacar que o verbo (predicado) não só é responsável por
determinar o número de lugares vazios, bem como por determinar morfossintáctica
e semanticamente os seus actantes. Assim, de acordo com o número de lugares
vazios, há verbos que prevêem apenas um lugar vazio (monovalentes); outros que
prevêem dois lugares vazios (bivalentes); e outros que prevêem três lugares
vazios (trivalentes), e em alguns casos verbos que prevêem quatro lugares
(tetravalentes) caso de X traduzir alguma coisa de Y para Z). Também há verbos
que não prevêem algum lugar vazio (avalentes).
Ainda ancorados na teoria valencial, ressalte-se que a
nível morfossintáctico, o verbo é que determina a marca ou ausência de marca
preposicional nos seus actantes. Sob perspectiva estritamente sintáctica, é o
verbo que determina a pronominalização. Destarte, certos actantes são passíveis
de substituição por um pronome de acordo com o verbo de que dependem.
1. O Pedro obedece ao pai.
Na construção acima, o termo [ao pai] pode ser substituído
por [lhe] ou pela forma tónica [a ele].
2. O Pedro recorreu ao pai.
Todavia, neste exemplo, o termo [ao pai] não admite
substituição por [lhe], senão pela forma [a ele]. Portanto, embora o pronome «lhe»
cliticize, via de regra, estruturas introduzidas pela preposição «a», casos há
em que não é possível o emprego dessa forma pronominal, em virtude da natureza
do verbo. Certos verbos rejeitam o emprego do pronome recto «lhe», como, por
exemplo, «assistir» quando significa ver ou presenciar.
Valência
dos verbos «concordar/discordar» e «aparecer/desaparecer»
Os verbos «concordar/discordar» são quantitativamente
bivalentes, i. e., apresentam dois lugares vazios para o preenchimento pelos
respectivos argumentos. A nível morfossintáctico estes verbos seleccionam um
argumento SN que funciona como Sujeito e um argumento SP que funciona como
Objecto Directo, numa construção do tipo X concorda com Y.
1.
O João concorda com a opinião do Manuel.
Como se pode notar, o SN [O João] desempenha a função
sintáctica de Sujeito e o SP introduzido pela preposição [com] integrando um SN2
desempenha a função sintáctica de Objecto Directo. Esta situação é verificável
também usando o verbo oposto [discordar] que nos sugere uma construção do tipo
X discorda de Y.
2.
O João discorda da opinião do Manuel.
Nesta construção, os argumentos do verbo desempenham as
mesmas funções sintácticas dos seleccionados pelo verbo concordar, porém o
constituinte nuclear do SP é a preposição [de] ao invés da preposição [com].
Convém observar que «concordar» e «discordar» têm
significados opostos. «Concordar», etimologicamente significa aproximar os corações,
porém «discordar» é afastá-los, isto é, separá-los. Normalmente os verbos
iniciados por [com-/con-] regem complemento introduzido pela preposição “com”,
numa espécie de confirmação da relação semântica indicada pelo prefixo (NICOLETI,
S/D). Em contrapartida, temos «discordar de», em que o prefixo [dis-] indica
afastamento. Esta ideia se reflecte na preposição [de], que introduz o
complemento do verbo. O par [com/de] indica aproximação/separação, como se vê
em «casar (-se) com
alguém» e «divorciar-se ou separar-se de
alguém».
Os
verbos «aparecer/desaparecer» são também bivalentes, ou seja, são verbos de
dois lugares. Seleccionam um argumento SN que desempenha a função sintáctica de
Sujeito, e um argumento SP com a função sintáctica de circunstante de lugar que
na Gramática Tradicional é considerado Adjunto Adverbial de Lugar. Assim, a
valência do verbo [aparecer] constrói-se em X apareceu em Y.
3. Dinish
Satar apareceu em Moçambique.
Na
frase, o SN [Dinish Satar] é o primeiro argumento do verbo [aparecer] e o SP
[em Moçambique] é o segundo argumento. Note-se que o SP tem como núcleo a
preposição [em] que em alguns casos pode estar contraído a um artigo. No
entanto, o verbo [desaparecer] apesar de possuir a mesma valência selecciona um
argumento SP introduzido pela preposição [de] por razões já apresentadas
anteriormente. Deste modo, projecta uma estrutura X desapareceu de Y.
4. Anibalzinho
desapareceu da Cadeia Central.
Deste
modo, conclui-se que os verbos em estudo, apesar de possuírem a mesma valência,
seleccionando argumentos morfossintaticamente equivalentes, diferem na selecção
da preposição introdutora do SP.
Construções estranhas pelos
utentes das redes sociais
Através de um teste escrito a que foram
submetidos de forma espontânea por meio de redes sociais (Facebook e Whatssap)
simulando conversas sobre temas da actualidade político-social do país,
colhemos alguns dados que nos permitiram constatar que os utilizadores das
redes sociais dominam a regência dos verbos «concordar» e «aparecer», contudo,
desconhecem as propriedades de selecção dos seus opostos «discordar» e
«desaparecer».
A
partir de um universo de dez informantes submetidos ao teste, apenas três é que
demonstraram domínio das propriedades idiossincráticas dos verbos em discussão,
porquanto apresentaram construções frásicas gramaticalmente correctas do ponto
de vista de selecção da preposição introdutora do segundo argumento como se
pode notar nas frases abaixo:
IA[1]
(…) concordo com a ideia da realização do encontro entre Nyusi e Dhlakama. (…)
mas discordo da indicação de alguns integrantes do grupo das negociações.
Como
se pode observar, o informante preencheu correctamente os lugares vazios tanto
do verbo «concordar» como do verbo «discordar», respeitando as propriedades de
selecção da preposição «com» e «de» respectivamente. Esta proeza foi conseguida
pelo informante B, como prova o excerto abaixo:
IB:
(…) Guebuza aparece em televisão e ainda faz discursos. Mas a esta altura ele devia ter
desaparecido do país devido às
polémicas em que se encontra envolvido.
Nesta
construção, nota-se a presença dos argumento seleccionados pelos verbos
«aparecer» e «desaparecer» sendo um SN Sujeito e um SP com a função sintáctica
de circunstante de lugar, respeitando as propriedades de selecção categorial dos
verbos em causa, que, no caso vertente seleccionam as preposições «em» e «de»
respectivamente.
No
entanto, os restantes informantes demonstraram desconhecimento das propriedades
idiossincráticas dos verbos de significação contrária, visto que aplicam a mesma
preposição para a introdução do SP argumento do verbo em causa, como se pode
observar nas construções que se seguem:
IC:
Concordo com a necessidade do diálogo ao mais alto nível mas *discordo com a
ideia da inclusão dos partidos extraparlamentares. Sobre Guebuza, ele aparece na televisão sempre mas devia
*desaparecer no país (…).
ID:
Realmente a ideia do encontro entre
Dhlakama e Nyusi é boa e concordo com
ela, mas discordo *com a presença de mediadores
internacionais. Guebuza apareceu na
Praça mas devia desaparecer *naquele
lugar.
Os
excertos acima demonstram as dificuldades enfrentadas por alguns dos
informantes que pautam pelo uso da mesma preposição para os verbos de
significação contrária, o que contrasta com as propriedades de selecção
categorial dos verbos em causa.
Considerações finais
A Gramática de
Valências é uma teoria que fundamenta a teoria de regência verbal, visto que
demonstra através das valências verbais o número de argumentos seleccionados
pelo verbo, trazendo alguns aspectos que superam as limitações da Gramática
Tradicional ao discutir a transitividade.
A partir da base
teórica da regência verbal, constatamos o desconhecimento das regras de
selecção verbal dos verbos de significação oposta por parte dos utilizadores
das redes sociais. A partir dos testes a que foram submetidos, depreendemos que
usam a mesma preposição para ambos verbos de significação contrária.
Em função destas
constatações, julga-se pertinente a integração dos conteúdos sobre a regência
verbal nos manuais de Português para permitir que os alunos adquiram
conhecimentos sobre as propriedades de selecção categorial dos verbos, durante
a sua escolarização, uma vez que, grande parte dos utilizadores das redes
sociais são estudantes de diferentes níveis do ensino geral e/ou técnico
profissional.
Referências
bibliográficas
AZEREDO, J. C. de. Gramática Houaiss da Língua
Portuguesa. São Paulo, Publifolha, 2002.
BORBA, F. da S. Uma gramática de valências para o português. São Paulo, Editora
Ática, 1996.
BUSSE, W. & VILELA, M. Gramática de valências. Coimbra,
Livraria Almedina, 1986.
DUARTE, V. B. da C. Uma análise da regência verbal em livros
didácticos do ensino médio. Paraíba, UEPD, 2014.
PERINI, Mário A. Gramática do Português Brasileiro. São Paulo, Parábola, 2001.
TESNIÈRE (1959) In BORBA, Francisco S. Uma
Gramática de Valências para o
Português. São Paulo,
Ática, 1996.
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